O que sente uma mulher que trai? Por Stella Florence
O que sente uma mulher que trai? Há anos, num museu quase deserto, ouvi o relato pungente de uma estranha. Ela precisava desabafar e eu estava ali. Ao chegar em casa, transformei o relato em texto. Vale lembrar: aqui não há julgamento, apenas os devaneios dela. Sem mais delongas, vamos ao seu desabafo. (...)Você nunca tinha sentido isso. Agora, é como se você só tivesse coração. Se fosse possível, você pegaria uma faca e o arrancaria de dentro de você, cortaria todos os tecidos e veias e artérias até que não sobrasse nada. Mas você sabe, mesmo morta, ele ainda iria doer.Você nem se olha no espelho, não quer ver um rosto de palhaço aparecer e perguntar: “De quem é a culpa, hem?”. A culpa é sua e você sabe. Foi você quem decidiu testar seus limites, morder a maçã, ouvir a cobra. Foi você quem decidiu que teria um caso.Você começou achando tudo uma festa, supondo que poderia dar um basta quando quisesse, que tinha as cartas do jogo na mão. Eu saio quando eu quiser, você dizia. Parece papo de junkie travado de pó. É isso o que você é agora: uma viciada enfrentando sua primeira crise de abstinência. Ele não te quer mais, ele foi embora, ele acreditou na sua displicência e ficou tranquilo para confessar “conheci outra pessoa”. Ninguém pode dizer que você foi enganada, levada pela mão: durante uma boa parte do trajeto foi você quem conduziu a carruagem. Agora aguenta a abóbora fervendo no seu colo, Cinderela. Até mesmo sofrer, um direito de todo ser humano, lhe é negado. Quem trai não tem o direito de sofrer, não abertamente. À noite você vai ter de engolir o choro para o seu marido não perceber nada, de dia você vai ter de engolir o choro para os seus colegas não perceberem nada, na hora do jantar você vai ter de engolir o choro para os seus filhos não perceberem nada e quando você não aguentar mais, quando estiver quase sufocando, você vai se enfiar debaixo do chuveiro e chorar. Mas chorar pouco, porque sua cara não pode ficar inchada.Essa é a pior parte: não poder contar nada a ninguém. Não poder se enfiar numa cama e definhar por duas semanas. Não poder chutar o trabalho e deitar no colo da sua mãe. Não poder sofrer em paz. Não poder abrir a veia e libertar esse sangue ruim. Não poder queimar como fênix, até o último naco de pele e carne e pena, para depois ressurgir mais forte. Mas você não pode queimar até o fim. Você sequer pode queimar. Você tem contas a pagar, comida para fazer, filhos a criar, contratos a fechar, marido para transar. Quando você conseguir catar os cacos desse sofrimento sem nome vai estar mais cheia de fissuras do que agora. Você vai se levantar, sim, mas estará manca, torta e trêmula. Drenar a dor é tudo o que você precisa agora. Drenar, não morrer. Morrer é fácil. E você quer estar viva quando ele aparecer um dia dizendo “puxa, estou com saudade”. Ou talvez, espera um pouco, talvez você possa encontrar outro homem, outro que tape a ferida, outro que, enquanto te beija, sem perceber, possa drenar esse sangue negro para bem longe. É isso. Você precisa de um outro amante. Como uma droga, que venha algo mais forte. Algo estupidamente mais forte.